segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Sobre "amor"



Aviso: contém alguns spoilers

Com um ano de atraso, assisti ao filme “Amor” de Michael Haneke  (A Professora de piano, Caché, A fita branca) que levou o Oscar de filme estrangeiro em 2013. É uma película acima de tudo honesta.  Emmanuelle Riva, atriz que interpreta a protagonista, está impecável e o texto é absolutamente correto. Em algumas cenas vi e ouvi minha tia na fase final de sua vida.

Depois do impacto, fui reler alguns artigos sobre o filme e vi que rolou certa polêmica se aquilo era “amor” ou não. Um bom exemplo é o texto do blog Já Matei por Menos “Amour não é sobre amor” . O ponto da autora é bem interessante, mas eu não diria que Amour não é sobre amor. É sobre amor, também. Porque amor é um sentimento humano e como tal não é uma coisa perfeita. Amor convive com raiva, com frustração, com dor, com desespero. E é sobre isso o filme: como o amor convive com o fim da vida.

Entre as inúmeras coisas que eu aprendi com a maternidade está essa: muitas vezes amar não basta. Porque a gente pode amar muito, profundamente, mas temos outros sentimentos. E esses sentimentos, egoísmo, cansaço, raiva, pena de si mesmo,  até preguiça, de vez em quando sufocam o amor e vencem. Por isso amar, para mim, envolve muito controle e esforço. Amar envolve não permitir que outros sentimentos passem na frente e façam a gente cometer uma injustiça.

Uma injustiça do tipo... sufocar sua companheira acamada e indefesa com um travesseiro e matá-la. Pois é, porque não dá pra dizer que quando o marido mata a esposa no filme, por mais que ela demonstrasse frustração com a situação em que se encontrava, tenha sido um ato de amor (e isso não significa que ele não a amasse), foi na verdade um ato de egoísmo, um ato de desespero, um ato de cansaço (e quantas vezes a gente não faz isso em escala menor, vocês já pensaram nisso? Cada palmadinha, cada castigo injustificado, cada vingancinha praticada contra quem amamos).

E aí vem outro ponto interessante do filme que é como a sociedade ocidental encara a questão do cuidado e da ‘dignidade’. Durante todo o filme o marido, estoicamente, faz questão de manter a mulher em sua casa, o que é um conforto, e de cuidar dela todo o tempo. Ele carrega, ele lava o cabelo, ele compra cadeira de rodas com motorzinho, ele faz comida, ele troca a fralda. Os vizinhos ficam emocionados ao ver tanta dedicação. Só que no final, quando já está exausto, ele também bate e mata. Além disso, creio eu por remorso, por saber o tamanho da bobagem que fez, suicida-se em seguida. Vale a pena?

A própria mulher, no início do processo da doença diz: não me leve mais ao hospital. Aí eu me pergunto, sabia ela, naquele momento, o que aconteceria? Porque ela poderia emendar a frase: ‘mas, por favor, também não me mate, ok? Antes disso, talvez seja mais prudente me levar para uma casa de repouso’.

Em nome de uma pretensa dignidade, ou de um sentimento de obrigação com a companheira, o marido prefere acabar com duas vidas. Não seria mais interessante pedir ajuda? Aceitar suas limitações, inclusive para continuar amando aquela pessoa e respeitando a dignidade dela?

Dentro da minha perspectiva ética, a morte deve ser um processo natural. E deve ser sustentada pelos familiares e pessoas que amam a pessoa que está no fim da vida (a não ser que essa pessoa esteja consciente e prefira dar cabo à vida, mas não é o caso do filme). Quando a minha tia morreu tive que brigar (muito) com médicos e profissionais de um hospital para que eles a encaminhassem para um CTI. Ouvi que a medicina podia fazer muito pouco e que ela morreria em breve. Eu disse: danem-se vocês, nós vamos fazer o máximo possível. Não me arrependi. Ela sobreviveu mais quatro dias, mas sabendo (ou não, não sei, ela estava inconsciente) que estávamos lutando por ela.

Por outro lado, nós usamos sim, uma casa de repouso. E sabíamos que não era o que ela queria. Procuramos o melhor lugar, acompanhamos cada tratamento, mesmo sabendo que no fundo, ela poderia estar magoada. E a visitamos todas as semanas sem falhar nunca: eu, minha mãe, meu companheiro e minha filha de dois anos na época. Não me arrependi. Pois nós estávamos fazendo o máximo possível. 

Acho que a sociedade tem que repensar essa relação com o cuidado. E olhar com menos preconceito as suas possibilidades. Porque o amor, para existir, também precisa de condições mínimas. Se a realidade retira essas condições, e a gente não faz nada para mudar, inclusive assumindo que somos seres limitados, e que existe raiva, cansaço, egoísmo, não tem sentimento nobre que dê jeito. E aí quem vence é a morte mesmo, inclusive do amor.        

Nenhum comentário:

Postar um comentário